segunda-feira, 29 de março de 2010

CUIDADO COM OS BURROS MOTIVADOS

A transdisciplinaridade, é a ferramenta que saberá costurar os saberes capazes de reestruturar nossa civilização para que possamos transcender os obstáculos oferecidos a nós, humanos, em meio as diversidades de diversas naturezas presentes em nossa contemporaneidade.Neste caso, medicina versus administração de empresas. Veja!


Entrevista da Revista ISTO É:*

"*CUIDADO COM OS BURROS MOTIVADOS* - *(Entrevista com Roberto Shinyashiki) *


A revista ISTO É publicou esta entrevista de Camilo Vannuchi. O entrevistado
é Roberto Shinyashiki, médico psiquiatra, com Pós-Graduação em administração
de empresas pela USP, consultor organizacional e conferencista de renome
nacional e internacional.
Em 'Heróis de Verdade', o escritor combate a supervalorização das
aparências, diz que falta ao Brasil *competência,* e não auto-estima.

*ISTO É* - Quem são os heróis de verdade?
*
Roberto Shinyashiki* -- Nossa sociedade ensina que, para ser uma pessoa de
sucesso, você precisa ser diretor de uma multinacional, ter carro
importado, viajar de primeira classe.

O mundo define que poucas pessoas deram certo.

Isso é uma loucura. Para cada diretor de empresa, há milhares de
funcionários que não chegaram a ser gerentes.

E essas pessoas são tratadas como uma multidão de fracassados.

Quando olha para a própria vida, a maioria se convence de que não valeu à
pena, porque não conseguiu ter o carro, nem a casa maravilhosa.

Para mim, é importante que o filho da moça que trabalha na minha casa, possa
se orgulhar da mãe.

O mundo precisa de pessoas mais simples e transparentes.

Heróis de verdade são aqueles que trabalham para realizar seus projetos de
vida, e não para impressionar os outros.

São pessoas que sabem pedir desculpas e admitiram que erraram.

*ISTO É* -O Sr. citaria exemplos?
*
Shinyashiki* -- Quando eu nasci, minha mãe era empregada doméstica e meu
pai, órfão aos sete anos, empregado em uma farmácia.

Morávamos em um bairro miserável em São Vicente (SP) chamado Vila Margarida.
Eles são meus heróis.

Conseguiram criar seus quatro filhos, que hoje estão bem.

Acho lindo quando o Cafu põe uma camisa em que está escrito '100% Jardim
Irene'.

É pena que a maior parte das pessoas esconda suas raízes.

O resultado é um mundo vítima da depressão, doença que acomete hoje 10% da
população americana..

Em países como o Japão, a Suécia e a Noruega, há mais suicídio do que
homicídio.

Por que tanta gente se mata?

Parte da culpa está na depressão das aparências, que acomete a mulher, que
embora não ame mais o marido, mantém o casamento, ou o homem que passa
décadas em um emprego, que não o faz se sentir realizado, mas o faz se
sentir seguro.

*ISTO É* -- Qual o resultado disso?
*
Shinyashiki* -- Paranóia e depressão cada vez mais precoce.

O pai quer preparar o filho para o futuro e mete o menino em aulas de
inglês, informática e mandarim. Aos nove ou dez anos a depressão aparece.

A única coisa que prepara uma criança para o futuro, é ela poder ser criança
.

Com a desculpa de prepará-los para o futuro, os malucos dos pais estão
roubando a infância dos filhos. Essas crianças serão adultos inseguros e
terão discursos hipócritas.

Aliás, a hipocrisia já predomina no mundo corporativo.
*
ISTO É* - Por quê?
*
Shinyashiki* -- O mundo corporativo virou um mundo de faz-de-conta, a
começar pelo processo de recrutamento.

É contratado o sujeito com mais marketing pessoal.

As corporações valorizam mais a auto-estima do que a competência.

Sou presidente da Editora Gente e entrevistei uma moça que respondia todas
as minhas perguntas com uma ou duas palavras.

Disse que ela não parecia demonstrar interesse.

Ela me respondeu estar muito interessada, mas como falava pouco, pediu que
eu pesasse o desempenho dela, e não a conversa. Até porque ela era candidata
a um emprego na contabilidade, e não de relações públicas.

Contratei-a na hora.

Num processo clássico de seleção, ela não passaria da primeira etapa.

*ISTO É* - Há um script estabelecido?

*Shinyashiki* -- Sim. Quer ver uma pergunta estúpida feita por um
presidente de multinacional no programa 'O Aprendiz'?

- Qual é seu defeito?

Todos respondem que o defeito é não pensar na vida pessoal:

- Eu mergulho de cabeça na empresa. Preciso aprender a relaxar.

É exatamente o que o Chefe quer escutar.

Por que você acha que nunca alguém respondeu ser desorganizado ou
esquecido?

É contratado quem é bom em conversar, em fingir.

Da mesma forma, na maioria das vezes, são promovidos aqueles que fazem o
jogo do poder.

O vice-presidente de uma as maiores empresas do planeta me disse:

'Sabe, Roberto, ninguém chega à vice-presidência sem mentir'.

Isso significa que quem fala a verdade não chega a diretor!

*ISTO É* - Temos um modelo de gestão que premia pessoas mal preparadas?
*
Shinyashiki* - Ele cria pessoas arrogantes, que não têm a humildade de se
preparar, que não têm capacidade de ler um livro até o fim e não se
preocupam com o conhecimento.

Muitas equipes precisam de motivação, mas o maior problema no Brasil é
competência.
*
*Cuidado com os burros motivados.

Há muita gente motivada fazendo besteira.

Não adianta você assumir uma função, para a qual não está preparado..

Fui cirurgião e me orgulho de nunca um paciente ter morrido na minha mão.

Mas tenho a humildade de reconhecer que isso nunca aconteceu graças a meus
chefes, que foram sábios em não me dar um caso, para o qual eu não estava
preparado.

Hoje, o garoto sai da faculdade achando que sabe fazer uma neurocirurgia.

O Brasil se tornou incompetente e não acordou para isso.

*ISTO É* - Está sobrando auto-estima?
*
Shinyashiki* - Falta às pessoas a verdadeira auto-estima.

Se eu preciso que os outros digam que sou o melhor, minha auto-estima está
baixa.

Antes, o ter conseguia substituir o ser.

O cara mal-educado dava uma gorjeta alta para conquistar o respeito do
garçom.

Hoje, como as pessoas não conseguem nem *ser*, nem *ter*, o objetivo de vida
se tornou *parecer*.

As pessoas parecem que sabem, parece que fazem, parece que acreditam.

E poucos são humildes para confessar que não sabem.

Há muitas mulheres solitárias no Brasil, que preferem dizer que é melhor
assim.

Embora a auto-estima esteja baixa, fazem pose de que está tudo bem.

*ISTO É* -Por que nos deixamos levar por essa necessidade de sermos
perfeitos em tudo e de valorizar a aparência?
*
Shinyashiki* -Isso vem do vazio que sentimos.

A gente continua valorizando os heróis.

Quem vai salvar o Brasil? O Lula.

Quem vai salvar o time? O técnico.

Quem vai salvar meu casamento? O terapeuta.

O problema é que eles não vão salvar nada!

Tive um professor de filosofia que dizia:

'Quando você quiser entender a essência do ser humano, imagine a rainha
Elizabeth com uma crise de diarréia durante um jantar no Palácio de
Buckingham'. Pode parecer incrível, mas a rainha Elizabeth também tem
diarréia.

Ela certamente já teve dor de dente, já chorou de tristeza, já fez coisas
que não deram certo.

*A gente tem de parar de procurar super-heróis, porque se o super-herói não
segura a onda, todo mundo o considera um fracassado. **

ISTO É* - O conceito muda quando a expectativa não se comprova?
*
Shinyashiki* - Exatamente. A gente não é super-herói nem superfracassado.

A gente acerta, erra, tem dias de alegria e dias de tristeza.

Não há nada de errado nisso.

Hoje, as pessoas estão questionando o Lula, em parte porque acreditavam que
ele fosse mudar suas vidas e se decepcionaram.

A crise será positiva se elas entenderem que a responsabilidade pela própria
vida é delas.
*
ISTO É* - Muitas pessoas acham que é fácil para o Roberto Shinyashiki dizer
essas coisas, já que ele é bem-sucedido. O senhor tem defeitos?
*
Shinyashiki* -Tenho minhas angústias e inseguranças. Mas aceitá-las faz
minha vida fluir facilmente.

Há várias coisas que eu queria e não consegui.

Jogar na Seleção Brasileira, tocar nos Beatles (risos). Meu filho mais velho
nasceu com uma doença cerebral e hoje tem 25 anos.

Com uma criança especial, eu aprendi que, ou eu a amo do jeito que ela é,
ou vou massacrá-la o resto da vida para ser o filho que eu gostaria que
fosse.

Quando olho para trás, vejo que 60% das coisas que fiz deram certo.

O resto foram apostas e erros.

Dia desses apostei na edição de um livro, que não deu certo.

Um amigão me perguntou:

'Quem decidiu publicar esse livro?'

Eu respondi que tinha sido eu. O erro foi meu. Não preciso mentir.

*ISTO É* - Como as pessoas podem se livrar dessa tirania da aparência?
*
Shinyashiki* - O primeiro passo é pensar nas coisas que fazem as pessoas
cederem a essa tirania e tentar evitá-las.

São três fraquezas:

A primeira é precisar de aplauso, a segunda é precisar se sentir amada e a
terceira é buscar segurança.

Os Beatles foram recusados por gravadoras e nem por isso desistiram.

Hoje, o erro das escolas de música é definir o estilo do aluno.

Elas ensinam a tocar como o Steve Vai, o B. B. King ou o Keith Richards.

Os MBAs têm o mesmo problema: ensinam os alunos a serem covers do Bill
Gates.

O que as escolas deveriam fazer é ajudar o aluno a desenvolver suas próprias
potencialidades.
*
ISTO É* - Muitas pessoas têm buscado sonhos que não são seus?
*
Shinyashiki* - A sociedade quer definir o que é certo. São quatro loucuras
da sociedade...

A primeira é instituir que todos têm de ter sucesso, como se eles não
tivessem significados individuais.

A segunda loucura é:

Você tem de estar feliz todos os dias.

A terceira é:

Você tem que comprar tudo o que puder. O resultado é esse consumismo
absurdo.

Por fim, a quarta loucura:

Você tem de fazer as coisas do jeito certo.

Jeito certo não existe.

Não há um caminho único para se fazer as coisas.

As metas são interessantes para o sucesso, mas não para a felicidade.

Felicidade não é uma meta, mas um estado de espírito.

Tem gente que diz que não será feliz, enquanto não casar, enquanto outros se
dizem infelizes justamente por causa do casamento.

Você pode ser feliz tomando sorvete, ficando em casa com a família ou com
amigos verdadeiros, levando os filhos para brincar ou indo à praia ou ao
cinema..

Quando era recém-formado em São Paulo, trabalhei em um hospital de pacientes
terminais..

Todos os dias morriam nove ou dez pacientes..

Eu sempre procurei conversar com eles na hora da morte.

A maior parte pega o médico pela camisa e diz:

'Doutor, não me deixe morrer. Eu me sacrifiquei à vida inteira, agora eu
quero aproveitá-la e ser feliz'.

Eu sentia uma dor enorme por não poder fazer nada. Ali eu aprendi que a
felicidade é feita de coisas pequenas.

*Ninguém na hora da morte diz se arrepender por não ter aplicado o dinheiro
em imóveis ou ações, mas sim de ter esperado muito tempo ou perdido várias
oportunidades para aproveitar a vida.*"

sábado, 16 de maio de 2009

Crianças e adultos: duas lógicas socialisadoras

Crianças e adultos: duas lógicas socialisadoras
Altino José Martins Filho*
* Mestre em Educação e Infância pelo programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Infância, Educação e Escola/GEPIEE/UFSC. Pesquisador líder do Grupo de Estudos em Educação Infantil GEDIN/UDESC.
E-mail: altinojm@ig.com.br
Em uma experiência educacional verdadeiramente compartilhada, as escolhas e decisões precisam ser feitas com o maior consenso possível e com um profundo respeito por uma pluralidade de idéias e perspectivas (SPAGGIARI, 1998).
Infâncias... Crianças e educação. Manifestações traçadas por processos de socialização marcados pela produção e reprodução interpretativa da cultura. Cultura do humano. Cultura das crianças. A vida ganhando expressão nos diversos momentos do cotidiano. Vidas constituídas e constituidoras de experiências estabelecidas em contextos coletivos de educação infantil, sejam creches, sejam pré-escolas. Contextos que recebem crianças e adultos com suas lógicas de socialização. Socialização que sofre confrontos e resistências, mas, também, encontros e reencontros...
Neste artigo, serão apresentadas duas lógicas de socialização, em um ambiente específico de educação formal. Propõe-se discutir e evidenciar a existência de tensões, contradições, resistências, encontros e reencontros nas relações entre adultos e crianças e entre as próprias crianças. Tentamos focar essas relações para perceber, nas crianças, os seus estilos de vida, suas regras e estratégias, seus referentes simbólicos e modos de apreensão do mundo e, assim, compreender a complexidade da infância em suas características intrínsecas e peculiares. Em relação aos adultos, vimos que suas relações foram se evidenciando e se destacando como algo a ser apreendido e analisado, pois suas interferências influenciavam muito as próprias relações entre as crianças. Com base no material empírico coletado na pesquisa (- refiro-me a pesquisa de mestrado em educação e infância no programa de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina concluída no ano de 2005-) foi possível perceber que a produção das culturas das crianças está associada ao universo cultural mais amplo, dos condicionamentos e das “múltiplas determinações”. São assim, expressões de uma totalidade maior.
Dessa forma, faz-se necessário antecipar que as relações sociais engendradas no interior de uma instituição educacional são tecidas por muitos relacionamentos e diferentes matizes intrapessoais e interpessoais. Isto se dá em razão de os atores sociais estarem envolvidos por diversas teias, construídas no entrelaçamento de condicionantes sociais, culturais e econômicos, mas que acabam tomando expressões peculiares pela interferência da história e das individualidades dos atores nas relações sociais.
Universos sociais diferentes
São abundantes os trabalhos na área da educação infantil que fazem referência às produções das culturas infantis. Tais abordagens são compostas por um conjunto de práticas e preceitos pedagógicos que vêm seduzindo uma gama bastante grande de professores e pesquisadores. Todavia, notamos que, algumas vezes, a função pedagógica do professor é substituída pela supervalorização das produções culturais das crianças, quase como se estas tivessem poderes mágicos para serem agentes das próprias vidas. Há, sem dúvida, tendências pedagógicas que procuram centrar as propostas educativas nas manifestações das próprias crianças, propagando idéias que a dimensão imaginativa, a produção cultural infantil e o desenvolvimento das crianças constituem-se independentemente de um ambiente produtivo de interações.
Nossa abordagem se diferencia de tal perspectiva, pois se considera primordial a presença ativa dos adultos/professores no processo de produção e reprodução interpretativa (CORSARO, 1997; 2002) das culturas infantis. A partir do que foi observado na pesquisa de campo, não é possível secundarizar e nem desprestigiar a atuação e o papel dos adultos no processo educacional. Vejamos no excerto que se segue:
Felipe está postado no canto do espelho. Matheus se aproxima e pergunta por que ele está sem camisa. Felipe responde que vai para uma festa. O adulto C, que está ao seu lado, questiona: Felipe, você vai para uma festa; posso ir junto? O menino responde que primeiro é preciso se “arrumar toda” para ficar bem bonita. O adulto C fala: como que eu vou me arrumar se não posso ir ao cabeleireiro? O menino responde: deixa que eu te arrumo. A (profissional) senta e solta os cabelos. Felipe começa a penteá-los. Aproximam-se Gabriel, Glaúcia, e Matheus e dizem que também querem ajudar a arrumar. Felipe retruca negativamente: só eu que irei arrumar, tá? O adulto C, segurando a mão do menino, fala: Felipe, no salão de beleza existem várias pessoas que trabalham juntas, que são os auxiliares (e continua explicando)... Então vamos deixar os amigos também participarem, né? A Glaúcia pode ser a ajudante, o Matheus o outro cabeleireiro (...). O menino concorda e a (profissional) combina para pegarem pentes, frascos de objetos de beleza, fitas coloridas e começarem a organizar o salão de beleza na sala. Após a arrumação, o que acaba envolvendo outras crianças também, inicia-se a brincadeira que se estende por quase toda a manhã (Diário de Campo).
As crianças, sendo consideradas atores sociais com competência e dinamismo próprio, revelam, em seu convívio diário com seus pares e com os adultos, o que gostam e o que não gostam de fazer nos espaços/tempos da creche. Neste ponto, pode-se afirmar que as expressões infantis assumem dimensões contextuais e não “reduzem a socialização a uma qualquer forma de integração social e cultural unificada, enraizada num condicionamento inconsciente” (DUBAR, 1997, p.79). Sendo assim, a socialização não se limita a um efeito das relações adultos-crianças, mas é também um efeito das relações entre as próprias crianças. Nas relações adulto-criança, ambos são atores atuantes na cena e de uma forma ou de outra, demonstram suas diversas dimensões humanas. Isto nos sugere rever o papel do desenvolvimento do sujeito humano na própria sociedade; sujeitos que estão imersos nas construções culturais, influenciando-as e sendo influenciados por essas construções.
A cena descrita anteriormente mostra que o adulto C (nome dado à professora pesquisada) buscava uma linguagem comum às crianças, o que possibilitava estabelecer laços de confiança, diálogo e aliança entre esses dois atores sociais. Por parte das crianças, era possível perceber que essa dimensão da socialização favorecia a produção das culturas infantis, pois, quanto mais próximo o adulto revela estar das crianças, mais condições tem de ampliar e oferecer uma gama de materiais para a realização de suas manifestações e processos de criação.
No caso do adulto pesquisado, verificou-se que ele comumente se introduzia nas atividades, brincadeiras e processos de socialização, intervindo junto às meninas e meninos. Esse profissional percebia que os elementos das produções culturais das crianças apresentam-se por meio da ação contextualizada, e tal ação precisa, em muitos casos, ser sistematizada e intencionalizada pelos adultos. As ações de mediação e interação revelam, a um só tempo, que a criança é um ser humano em desenvolvimento e que a condição para a autonomia passa pela mediação do adulto.
Cabe enfatizar que, ao caracterizar as relações desse profissional como favoráveis à produção das culturas infantis, admitimos que, para as crianças, a presença do adulto é de fundamental importância, principalmente se este procura potencializar e mediar de forma qualificada as manifestações culturais das crianças, como algo a ser considerado e ampliado. Na compreensão de Malaguzzi (1999), “para que os processos de socialização possam motivar a aprendizagem e a autonomia intelectual infantil, deve ser criada uma ampla rede de intercâmbios recíprocos entre criança/criança e adulto/criança”.
Nessa perspectiva, cremos que os processos de socialização estabelecidos pelos adultos, quando se pretende uma Pedagogia das Relações, são decisivos e essenciais: como facilitadores das trocas sociais entre os atores; como criativos, ao compor os espaços e ao propor as atividades; como sensíveis, ao acolher os pedidos e ao elaborá-los; e como respeitadores de preferências individuais, ao ouvir e acolher cada sujeito com suas particularidades.
Nesse episódio de socialização, constatamos que, quando o adulto C conseguia ativar a autonomia do grupo de crianças, criava oportunidades para conhecer cada uma delas, com respeito à individualidade, à condição social, cultural, étnica e econômica de cada menino e menina. Sendo assim, faz sentido dizer que “autonomia envolve formar pessoas que saibam trilhar os seus próprios caminhos, traçar a sua história, tomar decisões, construir a autoria e a liberdade. Dessa forma, educar para a autonomia implica possibilitar ao educando a construção das suas regras de conduta, visando à responsabilidade individual e coletiva que permite a convivência humana” (TRISTÃO, 2005, p.137).
Neste caso, pode-se afirmar que a participação do adulto tornava-se indispensável nas interações entre as crianças. Isso lhe possibilitava conhecê-las melhor e vice-versa. Cabe ressaltar que seu envolvimento era algo irradiador da possibilidade de construção de um trabalho pedagógico mais próximo das crianças e, mais distante das técnicas, modelos ou cartilhas que apresentam um discurso monológico, isto é, o adulto falando para as crianças, e não com as crianças. Via-se a dialogicidade como essência da educação. Concordando com Saviani (1994), o profissional da educação – o professor – precisa saber quais conteúdos humanizadores deve selecionar para garantir que a criança se aproprie das máximas qualidades humanas, bem como as formas adequadas para garantir esse processo de apropriação.
Resistência e confronto
O adulto B aproxima-se de algumas crianças que estão na mesa e pede para elas não se levantarem, pois irá organizar a sala para a hora do sono. Karyne olha para ele e diz: eu não quero dormir, não estou com sono. Esse adulto, no meio da arrumação da sala, tirando os brinquedos dos lugares e desmontando os cantos, responde para a menina: pois é, querida, aqui na creche todo mundo dorme. Percebo que as crianças começam a levantar-se das mesas e ficam muito agitadas. O adulto B, em tom de voz alterado, fala: olha, vocês precisam colaborar, pois estou limpando a sala para vocês dormirem em um ambiente limpo, tá? O menino Matheus responde: eu não quero dormir, não estou com sono! Vamos fazer diferente hoje! Em seguida, Matheus senta em um canto e começa a chorar, dizendo que não quer dormir. Ele é acalentado por Analu que diz: não precisa chorar; é só você não dormir; fica igual a mim deitado no colchão de olhos abertos até o adulto C chegar (Diário de Campo).
No excerto, Analu revela a criação de uma estratégia que lhe permite ficar acordada na hora do sono coletivo, atribuindo-lhe um outro significado e uma ruptura frente àquele momento da rotina institucional. Tal expressão é partilhada com Matheus, que, ao manifestar sua insatisfação para o adulto B por ter que dormir mesmo não estando com sono, é abordado por Analu no repasse de sua estratégia para driblar a ordem de que todos precisam deitar e ficar em silêncio durante duas horas após o almoço. Vê-se, mais uma vez, que as meninas e os meninos socializam suas descobertas e trocam estratégias de resistência e confrontação entre as lógicas de socialização.
Assim, como Analu, que apresenta uma estratégia de resistência para o inconformismo de Matheus, muitas crianças ficavam durante a “hora do sono” se remexendo de um lado para o outro sem conseguir dormir. Olhavam para o teto, comunicavam-se por meio de gestos e olhares, ficavam “escavacando” os colchões ou disfarçando; tocavam com o pé o colega do lado ou, ainda, escondiam livros e brinquedos embaixo da almofada e do colchão para poder brincar enquanto os adultos não viam.
Frente às expressões das crianças, verificou-se que o adulto B, envolvido nas atividades de arrumação do espaço da sala, não estabeleceu um diálogo mais profícuo com as crianças Ele até responde aos questionamentos delas, porém, de maneira determinada, esclarece que as coisas já estão definidas e não podem ser mudadas ou pensadas sob outras lógicas. No dia-a-dia da creche, percebi que, para alguns adultos, era impossível ousar fazer a rotina diferente Os relacionamentos referentes ao cuidado com a higiene, sono, alimentação são muitas vezes automatizados pelos adultos, não se dando a devida atenção às necessidades de cada criança, como ser único. Portanto, a instrumentalização de tais momentos significa tornar o sujeito mais adaptável à sociedade, desconsiderando a multiplicidade concreta da experiência infantil. Sendo assim, “o potencial de segregação e de autoritarismo presente nas relações pedagógicas não permite à criança construir o seu próprio universo, desrespeitando, inclusive, a complexidade que tal construção exige” (QUINTEIRO, 2002, p.37).
Nesse sentido, enfrentar a questão das tensões e contradições presentes nas relações entre adultos e crianças é fundamental para avançar em direção a uma concepção de socialização que integre esses dois atores sociais na creche, a tal ponto que as manifestações das crianças não sejam despercebidas e reduzidas. Ou ainda, como define Plaisance (2004), que não sejam levadas a processos de socialização invisível. O contrário disso seria enaltecer as relações das crianças em detrimento do valor do adulto no seu processo de formação humana.
Diante disso, propomos alguns questionamentos: seria tão difícil mudar o momento do sono, levando em consideração as reivindicações das crianças? O que as crianças poderiam fazer em vez de serem silenciadas durante as duas horas de descanso e sono obrigatórios? Que possibilidades de mudanças para a “hora do sono” as crianças apresentariam se lhes fosse oportunizado expor seus pensamentos? O que o menino Matheus queria dizer ao dizer vamos fazer diferente hoje? Que outras relações os adultos poderiam proporcionar às crianças, em vez de estabelecer uma certa rigidez para que todas durmam ao mesmo tempo?
Neste caso, é importante indagar: o que faz os adultos não viverem mais as múltiplas linguagens com que foram presenteados na infância? Por que será que elas ficam esquecidas/adormecidas, se proporcionam às crianças tanta felicidade, movimento, expressão, liberdade, fantasia, imaginação... Será possível algum dia ver os adultos buscarem nas crianças subsídios para viverem de forma plena a vida ou, ainda, será que algum dia olharão para as crianças de maneira a admirar e respeitar seus jeitos de ser, sem espanto, assombro, mas com satisfação e contentamento pela forma como vivem essa fase da vida? Como se desvincular do autoritarismo, da prepotência e do atraso de uma educação castradora do prazer? Parece que o caminho é pensar em uma educação que procure outras trilhas, no intuito de construir e viver a liberdade, a democracia e a autonomia, instituídas no paradigma do prazer, da espontaneidade, da diferença, da diversidade e da criatividade. Quem sabe este é o segredo para superar as turbulências que o mundo nos apresenta!
Constatamos que o processo de socialização, para alguns profissionais, assume a forma de uma relação pedagógica que submete a conduta das crianças às normas preestabelecidas. Essas normas servem como instrumento de alienação dos sujeitos, negando e substituindo, de forma autoritária e arbitrária, a construção de significados e de conceitos elaborados pelas próprias crianças. Assim, percebeu-se que o olhar das crianças permite revelar fenômenos sociais e culturais que o olhar dos adultos deixa ocultar.
Neste caso, verificamos que os adultos, ao exigirem das crianças o “bom comportamento” (ou seja, agir respeitando as normas disciplinares da instituição), acabavam impondo sobre elas um controle excessivo. Este fato os levava a manipular aspectos da própria cultura infantil para submeter as crianças a padrões sociais em prol de uma “boa educação”, que, como já mencionado, geralmente estavam ligados à adaptação e à conformação às regras e estratégias definidas pelos próprios adultos. Assim, exercer a coerção não significava uma autoridade explícita, pois alguns adultos, em muitos momentos, recorriam ao imaginário infantil. Reconhecemos que há que ter uma certa disciplina em um grupo com crianças pequenas, mas também percebemos que a criança deve ter garantido seu espaço/tempo de manifestação, participação, expressão, comunicação e produção cultural, que lhe permita viver sua infância na plenitude de sua geração.
De fato, pode-se perceber que as crianças expunham com intensidade seus desejos, anseios e necessidades, extrapolando os limites impostos e estabelecendo estratégias de rompimento frente ao que era colocado de forma arbitrária, em situações opostas ao mundo infantil. Dessa forma, para além da dimensão da brincadeira, foi possível apreender que as regras e estratégias formuladas pelas crianças possuíam uma forma específica de explorar o ambiente, de se relacionar com seus pares e com os adultos, que extrapolam os processos de socialização. Isto lhes garantia a possibilidade de expressar e criar suas culturas infantis.
Outras proposições
Assim, ao defender que as instituições de educação infantil são espaços de produção cultural das crianças, não podemos cair em uma fetichização da infância, o que nos levaria à total rendição à individualidade alienada desde a mais tenra idade (DUARTE, 2004, p.229). Isso quer dizer que o desenvolvimento cultural da criança, mais do que sua inserção na cultura, é inserção da cultura nela, para torná-la um ser cultural, considerando que as formas de interação entre crianças e cultura são mediadas pelas produções culturais (MARTINS FILHO, 2006).
Concordar com propostas que consideram as crianças produtoras de culturas, sujeitos ativos nos processos sociais, co-construtoras de conhecimentos, de identidades que as convertem em seres humanos, é diferente de considerá-las atores do próprio destino, supervalorizá-las em si mesmas. Não é possível aceitar que as crianças sejam confinadas em um isolamento do universo cultural mais amplo. Todavia, extrapolar as concepções que abreviam e dicotomizam a produção cultural das crianças é explicitar a importância de considerar as crianças parte integrante de uma classe social e cultural, orientando a organização de práticas voltadas para o máximo desenvolvimento humano na infância. Nas palavras de Arce (2001, p.164), é ir contra a inserção da criança na vida social, como um processo natural, universal e imutável, não deixando aparecer seu caráter histórico.
Dessa forma, consideramos que as crianças e os adultos devem ser vistos como uma multiplicidade de seres em formação, incompletos e dependentes, e é necessário superar o mito da pessoa autônoma e independente, como se fosse possível não pertencermos a uma complexa teia de interdependências (DELGADO e MÜLLER, 2005). Em relação às crianças, não abrimos mão do fato de que são seres em formação e que, por isso, necessitam do cuidado, proteção, atenção, de uma ação educacional e cultural dos adultos frente aos desafios que o mundo lhes apresenta. A partir de uma abordagem histórica, defendemos que o ser humano se constitui como síntese de múltiplas determinações, estando seu desenvolvimento e sua própria humanidade interligados a um conjunto de relações sociais.
Neste caso, valorizar e se ater à prática cultural das crianças em sua singularidade não significa desvinculá-la das determinações sociais mais amplas, mas sim a possibilidade de poder entender essa especificidade – essa produção cultural – que, para nós, é expressão de uma totalidade maior. Assim, o fato de buscar superar as concepções que centram o foco somente no ensino e no professor não pode nos levar a uma negação da presença do professor e do processo de ensino-aprendizagem que deve ser intencionalizado e mediado por ele. Como afirma Duarte (2001), não existe uma essência humana independente da atividade histórica dos seres humanos, da mesma forma que a humanidade não está imediatamente dada nos indivíduos singulares.
Ao trazer as produções das culturas infantis, pretendemos romper com uma educação marcada por abordagens escolares apoiadas em didáticas e técnicas pedagógicas que instrumentalizam a educação das crianças para uma formação humana calcada no viés da submissão e subordinação, alienando-a. Assim, temos um grande desafio, que é não subestimar as crianças, considerando-as incapazes, nem superestimá-las, atribuindo-lhes comportamentos muito além de suas capacidades e condições emocionais. Temos que ter cuidado para não cair num desamparo, abandono, nem exigir um comportamento de quem ainda não o tem para oferecer, pois, dessa forma, estaríamos negando a proteção da criança perante um mundo exigente e difícil.
Referências
Sugestões de leitura
ARCE, A. Compre um neoliberal para a educação infantil e ganhe grátis os dez passos para se tornar um professor reflexivo. Educação &Sociedade, Campinas, ano XXII, n.74, p.251-283, abr. 2001.
CORSARO, William A.. The sociology of childhood. Thousand Oaks: Pine Forge Press, 1997.
CORSARO, William. A reprodução interpretativa no brincar ao “faz-de-conta” das Crianças. Educação, Sociedade e Culturas. Edições Afrontamento, LTDA: Porto, Portugal, nº 17. p. 113-134, 2002.
DUBAR, Claude. A socialização: a construção das identidades sociais e profissionais. Porto: Editora, Coleção Ciências da Educação, 1997.
DUARTE, Newton (Org.) Critica ao fetichismo da individualidade. Campinas, SP: Autores Associados, 2004.

DELGADO, Ana C. & MULLER, Fernanda. Sociologia da Infância: pesquisas com crianças. IN: Educação & Sociedade: Revista de Ciência da Educação. Vol. 26, mai/agos. São Paulo: Cortez, 2005.
MALAGUZZI, Loris. História, idéias e filosofia básica. In: EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella & FORMAN, George. As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: ArtMed, 1999. p.59-104
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MARTINS FILHO, Altino José et al. Infância Plural: crianças do nosso tempo. Porto Alegre: Mediação, 2006, 120p.
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O PAPEL DAS RELAÇÕES SOCIAIS NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL

TÍTULO: O PAPEL DAS RELAÇÕES SOCIAIS NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL

Altino José Martins Filho

Resumo: Este artigo realiza a discussão sobre o papel das relações sociais e o desenvolvimento infantil. Apresenta como objetivo principal fazer uma análise crítica dos pressupostos teóricos contemporâneos que supervalorizam o processo educativo escolar baseado em atividades espontâneas, bem como, pretende pensar e refletir sobre as bases que secundarizam o papel do professor nas relações sociais em contextos de educação infantil. Neste sentido, as discussões estão centradas em torno do trabalho pedagógico do professor da educação infantil e de algumas definições subjacentes da chamada pedagogia da infância. Oferece, então, pistas para a valorização da mediação qualificada e intencionalisada do professor no contexto escolar infantil.

Abstract: This article carries through the quarrel on the paper of the social relations and the infantile development. He presents as objective main to make a critical analysis of the estimated theoreticians contemporaries who supervalue the established pertaining to school educative process in spontaneous activities, as well as, he intends to think and to reflect on the bases that secundarizam the paper of the professor in the social relations in contexts of infantile education. In this direction, the quarrels are centered around the pedagogical work of the professor of the infantile education and some underlying definitions of the pedagogia call of infancy. It offers, then, tracks for the valuation of the qualified and intencionalisada mediation of the professor in the infantile pertaining to school context.

Palavras-Chave: Socialização, Mediação, Professor, Educação Infantil

Key-Words: Socialization, Mediation, Professor, Infantile Education


O Papel das Relações Sociais no Desenvolvimento Infantil


Como Abertura

Humanização é o processo
Que confirma no homem aqueles traços
Que reputamos essenciais, como o
Exercício da reflexão,
A aquisição do saber,
A boa disposição pra com o próximo,
O afinamento das emoções,
A capacidade de penetrar nos problemas da vida,
O senso da beleza,
A percepção da complexidade do mundo e dos seres,
O cultivo do humor.
A literatura desenvolve em nós
A cota de humanidade
Na medida em que nos torna mais compreensivos
E abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.
(ANTÔNIO CÂNDIDO, 08/2006)


São abundantes os trabalhos na área da educação infantil que fazem referência às teorias e práticas pedagógicas que centram sua atenção nas vivências, no cotidiano, nas necessidades, nos desejos e nas atividades espontâneas das próprias crianças. Tais abordagens são compostas por um conjunto de práticas e preceitos pedagógicos que vêm seduzindo uma gama bastante grande de professores e pesquisadores, já que está na moda defender uma pedagogia que descentralize o foco – do adulto para a criança. Todavia, indicamos que em muitos casos, este extremado centramento na criança, prescreve que a interferência direta do adulto é prejudicial ao desenvolvimento da criança, quase como se as mesmas tivessem poderes mágicos para serem agentes de suas próprias vidas.
Neste estudo, temos como objetivo fazer uma análise crítica dos pressupostos teóricos atuais que supervalorizam o processo educativo escolar baseado em atividades espontâneas das crianças, bem como, pretende pensar e refletir sobre a secundarização do papel do professor nas relações sociais com as crianças. Procuraremos enfatizar a importância da figura do professor para o desenvolvimento infantil, ou seja, sua atuação como sendo de primordial importância para o desenvolvimento do psiquismo humano da criança; neste sentido, as discussões serão centradas em torno do trabalho pedagógico do professor e do papel das relações sociais no desenvolvimento infantil. O texto apresenta-se subdividido em três partes: a primeira dedica-se a analisar de forma sucinta o papel das relações sociais no desenvolvimento infantil; a segunda parte discorre a respeito do percurso da concepção das relações sociais na produção teórica da educação infantil e a desvalorização da mediação do professor; a terceira parte levanta alguns argumentos conclusivos indicando a mediação com atividade primordial do professor.

As Relações Sociais e o Desenvolvimento Infantil

Há, sem dúvida, tendências pedagógicas que procuram centrar as propostas educativas nas manifestações das próprias crianças, propagando idéias que a dimensão imaginativa, a produção cultural infantil, o desenvolvimento das crianças e as relações sociais, constituem-se independente de um ambiente produtivo de mediações qualificadas pelo professor.

Torna-se visível nas assertivas de alguns autores da área da educação infantil a extremada valorização da relação criança-criança em detrimento da mediação qualificada dos professores nas relações sociais. Para nós, isso requer um olhar crítico e atento ao papel das relações sociais no desenvolvimento infantil. Pois as crianças não vivem em um vazio social e não estão num mundo à parte dos adultos. Desta forma, as fragilidades, as turbulências, a falta de valores humanos, o esvaziamento do conhecimento e do ato de criação cultural do mundo contemporâneo, também são vividos pelas crianças. Assim, ao defendermos que as instituições de educação infantil são espaços para as relações sociais entre as próprias crianças, não podemos cair em uma “fetichização da infância, o que nos levaria a total rendição à individualidade alienada desde a mais tenra idade”, como aponta Duarte (2004, p. 229). Isso quer dizer que o “desenvolvimento social da criança, mais do que inserção dela na sociedade, é inserção do social nela, para torná-la um ser na própria sociedade” (Martins Filho, 2006).
Assim, concordar com propostas que consideram as crianças produtoras de culturas, sujeitos ativos nos processos sociais, co-produtoras de conhecimentos e de identidade que as convertem num ser humano, para nós, é diferente de considerá-las atores de seu próprio destino, supervalorizá-las em si mesmo. Não é possível aceitar que as crianças sejam confinadas a isolamento do universo social dos adultos. Todavia, extrapolar as concepções que abreviam as relações sociais do patamar criança-criança, é mostrar a complexidade da variação das relações sociais no universo social e cultural do humano. Nas palavras de Arce (2004, p.164), “é ir contra a inserção da criança na vida social, como um processo natural, universal e imutável, não deixando aparecer seu caráter histórico”.
Muitos aspectos característicos da nossa compreensão consideram que as crianças e os adultos devem ser vistos como uma multiplicidade de seres em formação, “incompletos e dependentes, e é necessário superar o mito da pessoa autônoma e independente, como se fosse possível não pertencermos a uma complexa teia de interdependências” (Delgado e Müller, 2005). Em relação às crianças, não abrimos mão do fato de que são seres em formação e que, por isso, necessitam do cuidado, proteção, atenção e de um desenvolvimento educacional, cultural e social dos adultos frente aos desafios que o mundo lhes apresenta. A partir de uma abordagem histórico-cultural, já propagada por muito estudiosos marxistas, defendemos que o ser humano se constitui como síntese de múltiplas determinações, estando seu desenvolvimento e sua própria humanidade interligados a um conjunto de relações sociais.
Neste caso, valorizar e se ater às relações sociais das crianças em sua singularidade, não significa desvinculá-la das determinações sociais mais amplas, é sim a possibilidade de poder entender essa especificidade, que para nós, significa expressão de uma totalidade maior. Assim, o fato de buscarmos superar as concepções que centram o foco somente no ensino e no professor, não pode nos levar a uma negação da presença do professor e do processo de ensino-aprendizagem, secundarizando o papel das relações sociais desses sujeitos no desenvolvimento das crianças. Como afirma Duarte (2004, p.250), “não existe uma essência humana independente da atividade histórica dos seres humanos, da mesma forma que a humanidade não está imediatamente dada nos indivíduos singulares”. Por usa vez, os processos de apropriação do mundo dos objetos humanos, da cultura humana, não podem realizar-se sem a mediação de outros indivíduos, ou seja, sem a participação do próprio homem, de um indivíduo que transmita, direta ou intencionalmente, o significado social contido nos elementos materiais e simbólicos de nossa cultura (Rossler, 2006). Daí a importância de afirmar o papel das relações sociais no desenvolvimento infantil, acentuando, neste caso, o professor como principal mediador entre os processos de objetivação e apropriação para que as crianças se autoproduzem e se reproduzam.
Ao trazer a valorização das relações sociais entre o professor e as crianças pretendemos romper com uma educação escolar marcada por abordagens apoiadas em didáticas e técnicas pedagógicas, que instrumentalizam e alienam a educação das crianças para uma formação humana calcada no viés da submissão e subordinação. Assim, temos um grande desafio, que é não subestimar as crianças considerando-as incapazes, nem superestimá-las atribuindo-lhes comportamentos muito além de suas capacidades e condições emocionais. Nosso alerta caminha no sentido de criticar a extremada valorização das relações sociais que se dão entre as próprias crianças, pois em nossa compreensão, temos que ter cuidado para não cairmos num desamparo, abandono, nem exigir um comportamento de quem ainda não o tem para oferecer, pois dessa forma estaríamos negando a proteção da criança perante o mundo exigente e difícil.

Percurso da Concepção das Relações Sociais na Educação Infantil: A Desvalorização do Professor nos Processos de Socialização

Para apresentar o percurso da concepção das relações sociais que domina a área da educação infantil e que tem dado suporte teórico a chamada pedagogia da infância, iremos analisar alguns pressupostos teóricos de dois texto de Ana Lúcia Goulart de Faria – professora da Universidade Estadual de Campinas/Unicamp –, por considerar seus escritos o alicerce do discurso hegemônico na educação infantil. Faria constrói seu arcabouço teórico apoiada na bibliografia italiana, após terminar seu doutorado sanduíche na Itália, a autora tem divulgado intensamente tal produção no âmbito brasileiro, suas propostas têm servido de referência para muito pesquisadores e professores na área da educação infantil.
No texto “Políticas de Regulação, Pesquisa e Pedagogia na Educação Infantil”, Faria de maneira breve, faz o mapa da trajetória da educação infantil no Brasil. Para a autora é entrando na dimensão da transgressão que a educação infantil vem construindo e consolidando a “Pedagogia da Infância” ou mais restritamente “Pedagogia da Educação Infantil”, a qual entra em cena pelo viés dos direitos das crianças. De acordo com as palavras da autora,

Somadas às pesquisas [...] produto do movimento feminista, totalmente inovadoras ao investigarem a produção das culturas infantis entre as crianças pequenas nos espaços públicos coletivos de educação instituicionalizada, temos as bases teóricas e científicas que nos orientam hoje ao entender as necessidades e os desejos das crianças (FARIA, 2005, p.1014).

Antes de analisarmos os extratos do texto de Faria, é importante localizar que no Brasil, a Educação Infantil constitui a primeira etapa da Educação Básica a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN 9394/96. Essa legislação assim como outras leis recentes a respeito da infância, “são conseqüência da Constituição Federal de 1988 que definiu, em relação à criança, a doutrina que toma a criança como sujeito de direitos” (Stemmer, 2006, p.25). A partir destas duas definições no âmbito da legislação, assistimos muitos teóricos da educação infantil realizarem uma defesa em prol da cidadania e do respeito às crianças, o que leva alguns autores, como é o caso de Faria (2005a e b), centrarem o foco da educação nas próprias crianças, como se o que elas elaborassem fosse auto-suficiente para seu desenvolvimento. Tal referência tem apostado intensamente na desescolarização da educação infantil e por conseqüência, vem também, secundarizando o papel dos professores no desenvolvimento infantil.
Voltando a análise do texto de Faria, importa ressaltar que para a autora, ao compreendermos as necessidades, os desejos e os interesses das crianças, estaríamos construindo as bases teóricas e científicas da área da educação infantil. O reconhecimento das crianças enquanto sujeitos de direitos, neste caso, perpassa pela libertada das mesmas construírem suas próprias culturas infantis, como se vivem em um oásis no deserto da própria sociedade. Parecê-nos que descentralizar o foco do professor, do ensino, dos conteúdos e da didática para a autonomia e liberdade de expressão das crianças, é suficiente para construirmos uma pedagogia que considera a criança como protagonista central das relações educativas. Neste caso, é que as relações sociais são defendidas, pelo grupo de intelectuais da área da educação infantil, como algo que se dá somente entre as crianças, ou senão, valorizam somente as relações das crianças entre si. Para nós, ao contrário, a extremada valorização das relações sociais no pilar criança-criança, não é suficiente para respeitarmos os direitos sociais das crianças e nem muito menos contribuirmos de maneira positiva para seu desenvolvimento integral, de maneira mais ampla, para sua formação humana plena.
Acompanhando a produção teórica nacional no campo da Educação Infantil, é possível perceber que, a busca pela superação de planos, programas e currículos educacionais padronizados, acaba sendo produto de uma inadequada compreensão sobre o papel do/a professor/a e o próprio papel das instituições. Pois, ao negarem a educação nos moldes da burguesia, educação que é hegemônica no cenário mundial, a qual aliena os sujeitos aos princípios do capitalismo e a dominação do capital e do mercado, acabam violentando e descaracterizando o processo de ensino-aprendizagem para as escolas das camadas populares.
Em nossa opinião, entre tantas desqualificações, o que realmente merece ser problematizado, é o desmerecimento da mediação do professor nos processos de socialização, reduzindo sua interferência na sala de aula a uma mera participação ou acompanhamento das relações sociais que se dão entre as crianças. Parecê-nos que a máxima em relação ao papel do professor no seguimento da educação infantil, é considerá-lo como apenas mais um participante e membro do processo educativo, no qual o professor é relegado para um discreto segundo plano no contexto educacional e por conseqüência, nas relações sociais travadas entre as duas categorias de atores – adultos e crianças. Por outro lado, as relações sociais dos professores são levadas ao patamar das crianças, as quais passam a ser responsáveis juntamente com ele pelo seu próprio desenvolvimento educacional, social e cultural. Tais proposições sobre o papel das relações sociais, do nosso ponto de vista, negam a mediação qualificada do professor como referência principal para o desenvolvimento infantil.
Isto dificulta de alguma maneira, a construção da profissão de/a professor/a de crianças e a própria definição do perfil profissional no campo da educação infantil, haja vista que traz uma simplificação e excessiva abstração do trabalho educativo do professor. Esse debate sobre o papel do profissional da infância, é considerado aqui, como algo equivocado desde seu princípio. Nesta abordagem, o professor quase desaparece, pois ele é apenas uma espécie de observador, atuando com práticas de ajustamento social ou apenas para resolver problemas individualistas que se dão entre as crianças, que também são vista em suas individualidades, sem referência a sua classe econômica e seu contexto histórico. Isto nos soa muito estranho e mesmo concordando com alguns pressupostos teóricos de Faria, nos faz neste caso, criticá-la, questioná-la e provocá-la!
Em essência, não compreendemos como as crianças podem se formar, sem um papel ativo da educação escolar, sem uma mediação qualificada e intencionalizada de ensino-aprendizagem do/a professor/a no desenvolvimento das mesmas. Na seqüência trazemos alguns excertos do texto de Faria (2005b) que nega o papel do professor como mediador da educação das crianças e transmissor de conhecimentos. Nestes, para a autora:

Pedagogia da educação infantil sem conteúdo. (Idem, p.126).
(...) que o professor não dá aula e que a criança não é aluno, que a pedagogia não é centrada no professor (Idem, p.130).
E vou estabelecendo uma relação nova que não é de filho para com a mãe, não é de enfermeira, não é de professora para com o aluno, é de uma criança para com outro adulto (Idem, p.132). Então essa visão da criança capaz de múltiplas relações, portadora de história, produtora de cultura e sujeito de direitos faz a gente perguntar: o que as crianças vão fazer comigo [referindo-se ao professor] lá na creche (...) (Idem, p.132).
É dificílimo ser professora de criança de 0 a 6 anos sem copiar a casa, a escola ou o hospital, porque é uma outra profissão. Professora de creche, professora de pré-escola não é a mesma profissão de professora que dá aula (Idem, p.138).

Para nós o conhecimento historicamente acumulado e objetivado pela sociedade é indispensável à educação escolar, mesmo quando se tem criança de 0 a 6 anos, pois deve agir de maneira ativa na formação das crianças. Ou melhor, mas ainda importante, é que os conteúdos escolares dirijam-se ao que ainda não está formado na criança, contribuindo ativamente em seu processo de constituição, na formação dos sujeitos de pouco idade – as crianças. Compreendemos ser está à tarefa mediadora do professor de qualquer nível de ensino. Analisando as passagens do texto de Faria (2005b) é curioso que este discurso da negação do professor é quase um consenso dentre os pesquisadores da área da educação infantil, justamente em um período em que a criança está iniciando uma interação com o mundo e com a cultura. Porque negar a mediação do professor neste processo? Porque reduzir as interações das crianças ao pilar criança-criança? Porque desvalorizar o papel das relações sociais dos adultos para as crianças? Porque afirmar exacerbadamente que professor da educação infantil é uma profissão a ser inventada? Uma profissão que não é professor e que nem pode ensinar?
O discurso que vimos no plano teórico, demonstrado aqui pelos textos de Faria (2005 a e b), tem sua repercussão na prática dos professores, pois assistimos abertamente professores desabafarem que não sabem mais como agir pedagogicamente na educação infantil. Trazem dúvidas que questionam o seguinte: “Pois é, se a relação crianças e adultos na creche não é de mãe, não é de enfermeira, não é de cuidadora e muito menos de professora, qual relação vamos travar com as crianças? Qual relação é considerada aceitável? Qual nosso papel na educação infantil, enquanto profissional do magistério? (Depoimento de uma professora de educação infantil em conversa informal) Para estas questões, podemos analisar nas passagens citadas do texto de Faria (2005b), que não há definições e nem esclarecimentos. Parecê-nos que a idéia é mesmo deixar submerso a indefinição do papel do professor da educação infantil. A autora entrega-se a um ecletismo pragmático, recortando idéias de outras teorias de um outro contexto histórico e cultural, neste caso, dos italianos. Detectamos claramente a desqualificação da figura do professor e da educação escolar, tal negação é explicita abertamente pela autora, que não é a única na área. A autora chega a duvidar do próprio uso da palavra “professor”, percebemos em nossas leituras que não há um consenso quanto à adequação ou não desse termo, posto que para a autora ele carrega “resquícios” da idéia de educação escolar e de alguém que ensina.
Para Stemmer (2006, p.53) a disparidade dos termos para se referir à educação infantil vai além dos rótulos; implica em diferenças tanto dos objetivos e práticas pedagógicas, quanto das modalidades de prestação desses serviços. Essa questão não é puramente conceitual e teórica, está vinculada, entre outras coisas, às responsabilidades institucionais e políticas públicas dirigidas à educação infantil.
Do nosso ponto de visto, realmente o que este discurso pedagógico faz é propagar a alienação. Arce (2005, p.164) explica que esse tipo de discurso pedagógico torna a inserção da criança na vida social um processo natural, universal e imutável, não deixando aparecer seu caráter histórico, não transparecendo que este fato é uma construção social fruto do próprio homem e do modo de produção que rege a sociedade. O que parece ser uma valorização real da criança e da infância constitui-se em recurso ideológico de desvalorização da educação escolar e de alienação dos indivíduos desde a mais tenra idade.
Neste ponto, voltamo-nos para as indicações de Duarte (1996, 2004) para sinalizar que “educar é produzir, de maneira intencional, necessidades cada vez mais elevadas nas crianças e nos futuros professores; é lutar contra a alienação empirista e imediatista; é colocar as crianças em contato com o não-cotidiano, por meio da transmissão daquilo que de mais elevado tenha sido produzido pelo gênero no campo da cultura intelectual”. Assim, compreendemos o trabalho educativo como o ato de produzir direta e intencionalmente nos indivíduos aquilo que foi produzido histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Nesse processo, o ser humano para formar-se enquanto sujeito transformador da realidade social da qual ele é parte, precisa relacionar-se com essa realidade pela mediação da apropriação do conhecimento produzido histórica e socialmente. Com base neste autor, defendemos também uma abordagem de educação que supere os limites do iluminismo sem negar o caráter emancipatório do conhecimento e da razão.
Temos nos dedicado a sistematizar a contribuição das definições sobre trabalho educativo, mediação qualificada do professor, apropriação, produção e transmissão do conhecimento histórico e científico pelo professor, para compreender os processos de formação e desenvolvimento da personalidade na infância, as relações entre o desenvolvimento do pequeno sujeito - criança e das atividades pedagógicas que participam em creches e pré-escolas. Por fim, nossa expectativa é analisar criticamente as indicações sobre as formas mais adequadas de garantir a apropriação da cultura e a apropriação das máximas qualidades humanas nas crianças. Para nós o processo de apropriação da cultura e do conhecimento acumulado historicamente pelos indivíduos é um processo de educação, que é transmitido, oferecido, proporcionado e intencionalizado pelo professor. Portanto, as relações sociais e educacionais sistematizadas pelo professor são de extrema importância para o desenvolvimento das próprias relações sociais que são travadas entre as crianças. Dentro deste contexto, as produções que se dão entre as crianças, não podem ser encaradas apenas no patamar da autonomia e da espontaneidade, pois a interferência e a opção do/a professor/a, torna-se algo necessário.
Duarte (1996) suscita pensar que o professor deve resistir à tendência de tornar fácil a tarefa de formar-se professor, num momento no qual as políticas neoliberais convergem para uma formação aligeirada e totalmente alienada dos processos políticos, econômicos e sociais. Assim, a atividade do professor é um conjunto de ações intencionais, conscientes, dirigidas para um fim específico. Ora, não será possível a criança realizar seu percurso histórico sem a mediação dos adultos, vale dizer da sociedade, da coletividade que lhe é contemporânea.
Podemos deduzir a partir do exposto, que ser professor não é algo tão simples, que ensinar exige preparo, planejamento, um pensar e repensar o fazer educacional-pedagógico. Isto se difere profundamente com o que Faria (2005a) propaga sobre a profissionalização do professor da educação infantil. Para a autora, o importante é valorizar e ser um conhecedor profundo das crianças. Em suas próprias palavras:

[...] o que deve ser destacado no movimento histórico aqui enfocado é a construção de uma pedagogia da educação infantil fundamentalmente não-escolarizante, que incorpora as pesquisas de várias áreas do conhecimento e busca conhecer a criança em ambiente coletivo, na produção das culturas infantis. (Idem, p. 1016).

No que concerne ao papel das relações sociais a autora afirma ainda que:

Desde os anos de 1970, na França e na Itália, têm sido feitas investigações em que, olhando, observando, dando voz e ouvidos à criança – mesmo quando ela ainda não fala, anda ou escreve –, torna-se possível reconhecê-la como capaz de estabelecer múltiplas relações, com um alto e sofisticado grau de comunicação com crianças de mesma ou de idade diferente e com adultos (Idem, p.1016).

Faria (2005) afirma que a perspectiva da criança construtora de cultura surge na década de 1980 com os estudos de Clotilde Rosseti-Ferreira no âmbito da psicologia, precisamente pelo interesse da autora em desenvolver pesquisas na temática das interações entre as crianças . Ela exacerbadamente transfere todo o processo educacional para a valorização das relações que se dão entre as próprias crianças, pois como podemos verificar nas próprias palavras da autora – “as crianças são possuidoras de um alto e sofisticado grau de comunicação (Idem, p. 1016)”. Em seu discurso responsabiliza as próprias crianças por seu desenvolvimento humano. Neste caso, podemos perceber que faz muito tempo que Faria não entre em uma escola de educação infantil, principalmente de uma periferia, do subúrbio ou de uma favela. Falamos isto, pois a cada dia temos que enfrentar com muita perspicácia o que as crianças trazem de seu contexto social e familiar para as escolas infantis. As crianças vêm nos demonstrando que estão diretamente em contato com a violência, a criminalidade, a exclusão social, a fome, a exposição e abuso sexual, as agressões físicas, as injustiças e muitas outras situações. Tudo isto aparece nas relações das crianças, realmente, concordo com a autora, porém, não consideramos que seja um alto grau de sofisticação para o desenvolvimento infantil. Portanto, se o professor não tiver preparo para problematizar tais vivencias, acaba sendo também vítima desta mesma sociedade que é posta às crianças. Neste sentido, que concordo com Duarte (1996), precisamos resistir às concepções tendênciais que tornam fácil a tarefa de ser professor. Neste mundo do capitalismo, torna-se cada vez mais complexa a tarefa de produção e transmissão de conhecimentos, cada vez está mais reduzida a tarefa de desenvolvimento de uma análise crítica. Não negamos as relações que se dão entre as crianças, ao contrário, analisando suas relações sociais, percebemos que elas não podem trazer o elemento novo por si só, não podemos ser coniventes com a defesa de uma educação centrada nas relações das próprias crianças, por este motivo. Concordamos que as crianças rompem, porém não são produtoras autônomas, é preciso que o professor possibilite as referências e por isso ele é o modelo para um desenvolvimento intencionalmente pensado e planejado. Sobre a noção de escola, concordamos com Saviani (1985), quando afirma:

Nela, o professor teria um papel chave na transmissão do saber elaborado, sistematizado, erudito de forma a garantir à população a possibilidade de expressar de maneira elaborada os conteúdos da cultura popular que correspondem a seus interesses (Idem, p. 20).

Assim, sob matrizes diversas, o que parece ser consenso na educação infantil é a valorização das interações entre as crianças, sendo o professor alijado de sua função precípua, qual seja: - pensar, planejar, direcionar, intencionar e sistematizar o desenvolvimento infantil. Este consenso no campo da educação infantil, para nós faz reaparecer o discurso da escola nova, porém travestido como nova roupagem.
Desta forma, afirmamos sem nenhum receio, que o principal motor do desenvolvimento da criança é a relação do adulto-professor com a mesma, sua relação atuará como provocador e não a relação direta de outra criança. O adulto-professor irá buscar subsídios para formar as características humanas nas crianças, as quais são socialmente transmitidas e neste caso, por sujeitos humanos mais experientes e não entre crianças que estão no mesmo patamar de desenvolvimento. Podemos dizer que produzir desenvolvimento é abrir um leque para que as crianças descubram suas potencialidades, já que ninguém se desenvolve diante do que não conhece. A própria concepção de desenvolvimento humano e de professor do discurso hegemônico da área da educação infantil é equivocada. Há uma contradição no discurso da própria produção teórica Em nossa opinião, isto se dá, devido ao ecletismo que paira sobre as produções desta área na contemporaneidade. No texto de Faria (2005b), aqui analisado, podemos localizar esta ambigüidade e contraditoriedade na seguinte passagem:

[...] Também não quer dizer que a educação, nessas instituições não tenha conteúdo, seja espontaneísta, só porque nelas não se trabalha com conteúdos escolares e o professor não ministra as disciplinas escolares formais, o professor é um professor de crianças (Idem, p.1021).

Percebemos que implicitamente a autora aponta para uma concepção de educação nos moldes da teoria histórico-cultural do sujeito humano, revelando um pensamento crítico e aportado no contexto histórico, ou seja, produzindo um discurso contra os modismos educacionais da contemporaneidade. Porém, a mesma se perde quando suas críticas acabam sendo anuladas no conjunto do seu próprio pensamento. Conjunto de pensamentos, que na sua totalidade se entregam aos ideários educacionais que desqualificam a intelectualidade do professor. A armadilha reside no fato de que a autora ao mesmo tempo em que defende um professor para a educação infantil, afirma que o mesmo terá que ser diferente de todos os outros professores, ou seja, que não irá ensinar conteúdos. Muito estranho e inconsistente suas afirmações e definições. Pois, como ser professor, sem ensino, sem processo de aprendizagem?
No traçado do percurso da concepção das relações sociais na educação infantil, Faria (2005a e b) revela que tais concepções estão pautadas fortemente em relações domésticas, na enfermagem e no tradicional, ao invés de estarem voltadas para o que as crianças criam entre elas, o que desejam e o que necessitam. Diante disso, lançamos três críticas à autora:
- Primeira: Não vemos as concepções educacionais tão entregues assim ao modelo tradicional. Também, gostaríamos de saber, o que a autora considera tradicional, já que não explicita em seu texto, apenas indica e descarta da educação infantil. Portanto, perguntamos: - Como romper, avançar e resistir desde jeito tão disfarçado e com críticas tão vazias como as de Faria?
- Segundo: A autora está totalmente centrada no cotidiano em si, no empirismo, no imediatismo, na defesa de uma epistemologia da prática. Seria possível transformar a educação ou ampliar e provocar o universo cultural das crianças, ficando impregnados somente nos seus desejos, necessidades e naquilo que criam?
- Terceiro: Faria indica e nisto concordamos, que as creches e pré-escolas em seu cotidiano estão impregnadas de relações domésticas, fazendo educação como se estivéssemos no âmbito privado, do familiar, porém, no mesmo parágrafo nega o ensino e a aprendizagem. Então, perguntamos novamente: - Como fugir de relações no âmbito do doméstico, do cotidiano, do privado, do familiar, negando o ensino e a escola? Parecê-nos que a autora se envolve em uma armadilha, sendo esta, uma arapuca arma por si mesmo.
É impossível aceitar tais definições, conceitos e concepções para a educação das crianças, sem externar a preocupação com a descaracterização e a desintelectualização do profissional do magistério, precisamos levantar nossas bandeiras em defesa do professor e da educação das crianças!


Considerações Finais: A Mediação como Atividade Central do Professor

Se eu quiser, mesmo agora, depois de tudo passado,
ainda posso me impedir de ter visto. E então nunca saberei da verdade pela qual estou tentando passar de novo – ainda depende de mim! (CLARICE LISPECTOR, 1990)

Nesta parte final do texto, mesmo compreendendo-a em seu caráter insipiente e não-conclusivo das idéias aqui expostas e discutidas, expressamos a importância de retomar alguns pontos da mediação como atividade central do trabalho educativo do professor, visando acrescentar alguns elementos ao debate hoje em curso na área da educação infantil, ou seja, a necessidade de construirmos algumas orientações para a consolidação de uma Pedagogia da Infância, sem com isto, apagarmos ou secundarizarmos o papel intelectual, intencional, sistematizado e de transmissor de conhecimento do professor no processo educativo.
Ainda que consideramos aqui a importância e o significado primordial do papel das relações sociais do professor junto ao grupo de crianças, arriscamos em dizer que as relações entre as crianças em ambientes institucionais constituem uma possibilidade para o adulto (professor) prestar atenção às ações infantis, ao uso que fazem das múltiplas linguagens e aos significados e sentidos que elas lhes atribuem nas suas manifestações culturais. Por sua vez, não há razões para supervalorizarmos essas relações em detrimento do papel e atuação do professor e dos conteúdos escolares. É preciso pontuar os limites e conter algumas expectativas dessas relações sociais nos processos do próprio desenvolvimento infantil. Em nossa compreensão, as relações criança-criança são uma alternativa para podermos conhecer as crianças melhor, intervir adequada e oportunamente, criando estratégias ou formas de participação e negociação mais ativas e partilhadas nos contextos coletivos de educação e não substituir a intervenção direta e intencional de um adulto na transmissão do significado dos conteúdos escolares e da lógica da produção de conhecimentos.
Como procuramos evidenciar aqui, a presença atuante dos professores nos processos de socialização em que as crianças estão envolvidas na instituição escolar, é de suma importância, sendo referência para o desenvolvimento da personalidade e para o desenvolvimento de faculdades e aptidões psíquicas fundamentais, que são requisitos para a constituição do indivíduo como ser humano. Tal evidência nos fez ressaltar o valor do adulto-professor como mediador das relações das crianças entre si, como componente fundamental do processo educativo e também como grande possibilitador de experiências de contato com as variações da cultura humana. O adulto-professor, ante as necessidades, interesses, desejos, vontades, relações, múltiplas linguagens das crianças, passa a ser o responsável pela ampliação dessas experiências e pelo acesso desses atores sociais ao conhecimento que é produzido e acumulado historicamente pela humanidade. Não nos parece ser possível pensar a condição de emancipação das crianças, descentralizando as ações dos adultos ou colocando-os em segundo plano, pois, para que a criança assuma seu papel de ator na sociedade e viva sua condição de cidadã, precisará do apoio, incentivo, instrumentalização e intervenção efetiva e qualificada do adulto-professor. Todavia, por outro lado, é preciso problematizar, romper com as práticas autoritárias, de regulação e controle que caracterizam, em muitas situações, as relações entre adultos e crianças. Isto deve contribuir para tornar a instituição escolar um local prazeroso para aprender e se desenvolver e não transpor os processos de ensino e aprendizagem para a responsabilidade das crianças, deixando-as responsável pelo seu próprio desenvolvimento. Ora, não é possível gerar laços, parcerias e trocas com as crianças, quando elas são deixadas a si próprias ou quando são colocadas sob tutela dos adultos, sem chances de elas interferirem na realidade.
Indicamos que é preciso criar novos possíveis, alargando o espaço da possibilidade, desconstruindo conceitos conformadores de infâncias e crianças como seres de outra espécie, como entidades isoladas do mundo material, físico, afetivo, histórico, cultural e social dos adultos, como se fossem adultos em miniatura ou sujeitos inacabados da condição humana. Pode-se dizer, que as relações sociais passam a configurar como sinônimo de educação, não as conduzindo somente ao pilar criança-criança.
Assim como não se quer negar a condição das crianças poderem ser crianças, também não pretendemos negar a condição dos adultos na creche, como responsáveis pela educação e o desenvolvimento das mesmas:
1) Pela tarefa de conduzir o processo educativo;
2) Organizar as práticas pedagógicas que, no nosso entender, devem apontar na direção da ampliação da experiência e dos conhecimentos das crianças em todas as dimensões humanas;
3) Desenvolver as máximas qualidades humanas, já que consideramos um direito social de todos.
4) Assumir a posição que adultos e crianças estejam no centro do processo educacional, travando relações que valorizem a humanidade que habita em todos nós.
Para não finalizar, passamos a palavra a Osvaldo Montenegro, com um trecho da música “Vale Encantado”, que revela, de forma poética, o universo cultural das crianças. Que ela também possa nos mobilizar a oferecer uma educação que ajude as crianças a acreditar em si mesmas e lutar para viver de forma digna e prazerosa:

Olha o sol tá caindo, como risos em luz prá você.
Viu não é só dor... Viu não é só tristeza não...
Quando anoitece no vale encantado, fica só um
fiozinho de luz vermelha, lá no horizonte. E todas as
crianças do mundo param para ver o pôr do sol.
Ah, o Deus das fadas fica tão triste, se a gente
deixa de ver o pôr do sol.
A linha vermelha puxa uma carruagem cheia de
estrelas, onde está a deusa dos sonhos e seu pó
mágico, que faz a gente pensar coisas lindas!
Quando vocês estiverem tristes pensem em coisas
lindas. Bolas, travessuras, carinho, carrinho, beijo de
mãe, brincadeira de queimada, árvore de Natal,
árvore de jabuticaba, céu amarelo, bolas azuis, risada,
colo de pai, história de avó...
Quando vocês forem grandes e acharem que a
vida não é linda, pensem em coisas lindas mas,
pensem com força, com muita força porque aí o
céu vai ficar cheio de vacas gordas amarelas,
cachorro bonzinho, bruxa simpática, sorvete de
chocolate, caramelos e amigos.
Vamos! Vamos lá! Vamos pensar só em coisas
lindas!
Brincar na chuva, boneca nova, boneca velha,
bola grande, mar verde, submarino amarelo, fruta
molhada, banho de rio, guerra de travesseiros,
boneco de areia, princesas, heróis, cavalos
voadores...
Êh! Já está anoitecendo no Vale Encantado!
Dorme em paz minha criança querida.
Vamos pensar em coisas lindas, até amanhecer.
“Vale Encantado” (Osvaldo Montenegro)


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